sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Florbela

Andando por vielas largas, seus passos eram cumprimentos diários, encaixes do dia.
Sua cabeleira desgrenhada contrastava com as cores de combinação pouco comum de suas
vestes, porém condizente à sua figura.
Quando caminhava impunha sua figura num brasão claro, moldura dos ares, finura de seus
pares. Precisava haver essa conclusão do dia já tão cinza.
Mas havia uma desordem em sua estética...fugia da comunal exposição, prendia a atenção;
suspendendo impressões de prontidão.
Constatava a percepção da sensibilidade... e sem querer.

Passava, andava, vivia. Simplesmente um elemento ao redor.
Uma passagem da ordem. Uma naturalidade da organização.

E ainda assim muitos olhavam, quase nada concebiam.
Uma satisfação incompreensível à padronagem frisava ainda mais seus contornos.
Não diriam-se profundamente belos nem estrondosamente impressionantes;
porém cativavam, e esse era um dos significamos quase atemorizantes.
Separando em lados, essas eram as aparências dos observantes.

Quanto à ela, a criatura expressiva da existência significativa no espaço que contornava;
era convidativa ao abraço, ao então sentir estas texturas e poder provar aonde havia verdade.
Um pilar mais exato deveria possuir, uma semelhança mais bruta, um aparar mais palpável.
Precisa de concreto o homem para nele fazer seu pilar.
E mesmo com nervos de aço, amolecia o fogo daquele olhar profundo.
Era vasta a longevidade. Mais do que seu sinônimo. Além do vocabulário.
Do entendimento ou explicação.
Isso para quem ainda a sintetizava. Aos que ousavam querer além.

Às falas adornadas pelos ouvidos, ficou um prazer preservado apenas nos gestos.
Não deram conta as palavras de tecê-la com tanta adorabilidade. Faltava. Emudecia.
E completava com presença.
E harmonizava com canções, que sequer ouviram-nas.
Daquela boca quase saiam frutos, deliciavam as retribuições com salivas contidas,
com sorrisos conclusivos.
Ou com distribuídos estalidos das junções delicadas.
Ainda havia quem quisesse neste adentrar. Na finura de braços enlaçadores se deixam manusear. Aninhar-se na liberdade mais acolhedora, quase contraditória, dona sem adquirir.

E à tudo ficou o enredo criado da visão de seus próprios olhos.
Verdes para dar o ar, criarem o oxigênio ao direcionarem-se à qualquer lugar.
Captavam figuras curiosas, experimentavam com outros arranjos de seu corpo os completos sentidos...
No acariciar dos entendimentos com mãos, na condução aos pés,
edificação rígida, impecável da boca; construía significados ao dar vida às palavras e as destruía quando materializava, poderia mastigá-los.
Sentia um poder puro e confortante dentro de si.
E não interessava qualquer conceito de potência ou modelo de ordem.
Seguia o fluxo natural; que sabia que constituía para estes indivíduos e o dia cinza.
Se quisessem mesmo a ordem, naturalizariam o caos
Entenderiam que o dia cinza espalha a morbidez pelo céus e consigna naturalmente a tristeza.
Que tantos pontos coloridos, esbaforidos nos centros urbanos são resultado de um pingo de creme na calça; uma padronagem esquecida pelo exercício das pequenas coisas.

Ousaram querer ter a realidade diante dos olhos, sendo que só pincelaram sonhos
Aquarelas com grãos de areia pintados, desbotados pela chuva.
Quando temem pela chuva, simplesmente não secaram suas linhas.
Apagam-se para em novos contornos se juntarem; para desbotarem a flor
e colorir um coração... o mesmo que estatelou-se ao chão.
E que a poça regou. Pra alguma moça pisar e ao pé fixar.
Crescer como raiz, semear o perfume, ter nome de flor e ao sorrir desfrutar de uma natureza incompreensível aos maquinários.

Morava numa agressividade adocicada pela imaginação.
Passava pelos caminhos construindo possibilidades;
seria pelos homens, pelos olhares, pelas palavras que brotavam de sua boca
que com o olhar que dava vida, fazia concreto nas calçadas.
E atenção indescritível, das tranças aéreas das possibilidades.



"(...) Trago no nome as letras duma flor...

Foi dos meus olhos garços que um pintor

Tirou a luz para pintar o vento...


Dou-te o que tenho: o astro que dormita,

O manto dos crepúsculos da tarde,

O sol que é de oiro, a onda que palpita. (...)"


(Florbela Espanca)

3 comentários:

R., R., Rosa disse...

Sempre gostarei das metáforas!
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Simone Ormelezzi Chersone disse...

Naturalidade da organização...

Organizados estamos nessa desorganização da humanidade...

Riquíssimo texto...

Clara Mazini disse...

Cativante a moça de letras. Cativante o texto.
Boa, essa palavra.!